O médico e prefeito de Uruburetama, José Hilson Paiva, pratica há décadas o crime de abuso sexual de suas pacientes, conforme denúncias de mulheres que procuraram o ginecologista em busca de consulta. O G1 teve acesso a 63 vídeos, filmados pelo próprio médico, com as pacientes. As gravações mostram Hilson com a boca nos seios de mulheres sob o pretexto de estar tirando secreção e penetrando as pacientes, alegando que precisava “desvirar” o útero delas.
Especialistas que assistiram aos vídeos afirmam que em nenhum momento Hilson Paiva realizou um atendimento ginecológico. “Trata-se de um monstro”, e as imagens “demonstram claramente um estupro da paciente”, avaliam profissionais da Associação Médica Brasileira.
O Ministério Público ouviu o relato de seis mulheres que dizem ser vítimas de abuso do médico. O prefeito afirma que nunca fez “nada forçado” e que as acusações são “jogada da oposição”. “Querem me derrubar”, argumenta Hilson de Paiva.
Os vídeos não podem ser publicados porque há mulheres nuas nas imagens e cenas de abuso sexual. Elas denunciam o prefeito desde a década de 1980, o que não resultou em condenação até então. Em outros casos, as mulheres relataram que tinham medo de denunciar o gestor porque dependiam da Prefeitura de Uruburetama para ter emprego no serviço público.
Onze mulheres ouvidas pelo Fantástico afirmaram que buscaram Hilson de Paiva pela boa reputação que ele tinha como médico na cidade. “Todo mundo tem ele como uma pessoa boa, sem saber o que ele faz”, afirma outra vítima.
Elas contam que eram atendidas em consultório particular na casa de José Hilson e também no Hospital Municipal da cidade.
Uma delas foi abusada quando tinha 14 anos. Atualmente maior de idade, ela diz que nunca contou nada pra ninguém sobre o caso e que voltava a se consultar com o doutor Hilson porque ele era o único ginecologista de Uruburetama.
Outra vítima estava com um nódulo no seio quando marcou uma consulta com o médico. “Fiquei nua. Eu achei estranho foi ele usar um canudo e chupar os meus seios.”
Em cinco dos 63 vídeos aos quais o G1 teve acesso, o Hilson de Paiva aparece com a boca nos seios das pacientes. Ele fala que é um procedimento médico para ver se há secreção. “Diminuindo, melhorou”, argumentava o médico após o procedimento abusivo.
“O que eu vi é uma maneira muito fácil de ludibriar as pessoas. Você não vai preparada pra lidar com uma situação dessa. A gente vai muito preparada pra ficar curada”, relata outra paciente do médico.
‘Trata-se de um monstro’
O secretário-geral da Associação Médica Brasileira, Antônio Jorge Salomão, assistiu aos vídeos e avaliou o conteúdo. Para ele, nenhuma das imagens mostra, a qualquer momento, um procedimento médico. “Em nenhum momento da humanidade existe esse procedimento. Isso é asqueroso.”
Para o vice-presidente da associação, Diogo Leite Sampaio, o caso se trata de crime. “Ele está se aproveitando da paciente. Ele não está examinando, procurando nenhum problema na paciente. Isso é crime.”
Das 11 mulheres localizadas pelo Fantástico que acusam o médico José Hilson, duas aparecem em três dos 63 vídeos.
Uma delas conta que procurou o doutor Hilson em 2012 porque não conseguia engravidar. No vídeo, ela já aparece nua, no consultório particular do médico, onde ele atende até hoje. A mulher nunca havia feito exame ginecológico.
“Ele pegava nos seios e pediu pra fazer sexo oral com ele”, lembra a paciente. “Fazer uma aplicação oral porque é muita secreção mesmo. Muita, muita, muita”, argumentava o médico. “Perguntei a ele por quê. Ele pegou e disse que não, que era o procedimento. Que era o que o médico fazia. Que ele tinha que ver a minha sensibilidade. Eu disse pra ele que não, que eu não queria.”
O vídeo mostra que, em seguida, o médico coloca a paciente em pé, de costas, apoiada na maca. “Pode virar. Isso, bem devagar”, comenta Hilson no vídeo. “Ele começou a mexer detrás de mim. Ele dizia: ‘Você tem que me ver como médico. Você não pode me ver como um homem. Eu sou seu médico’.”
O abuso deixou trauma na paciente. “Eu era uma pessoa que achava graça do nada, sabe? Agora todo mundo acha estranho. Vem falar comigo e eu estou séria. Eu não consigo mais brincar com ninguém”, lamenta.
Uma outra paciente que aparece nos vídeos gravados pelo médico foi abusada, segundo ela, em 2017. O crime ocorreu também no consultório particular do ginecologista e mostra o mesmo tipo de abuso: a paciente nua, de costas, e ele dizendo que está fazendo um exame. “Isso tá muito inflamado, mulher”, diz o médico no vídeo.
“Ele introduziu algo na minha vagina nessa hora. Ele vai levando na lábia”, relata a vítima. Ela não denunciou o médico. Diz que, por causa do abuso, faz tratamento psicológico e psiquiátrico. “Eu me sinto nua e despida, como se a culpa fosse minha.”
Analisando o caso dessa paciente, representantes da Associação Médica Brasileira avaliam que não houve atendimento profissional. “Não existe um tratamento clínico, muito menos uma manipulação que esse senhor, que eu nem posso chamar de médico, fez com a paciente”, argumenta Diogo Leite Sampaio.
Os vídeos mostram o ginecologista com pelo menos 23 mulheres. Dentre elas, 17 claramente foram enganadas pelo médico e sofreram abusos sexuais, conforme avaliação dos especialistas.
“É indescritível as cenas que nós observamos. Não se trata de um médico. Trata-se de um monstro”, avalia o secretário-geral da Associação Médica Brasileira.”São crimes graves. Muitas das imagens demonstram claramente um estupro da paciente, que precisam ser punidos severamente. São imagens repugnantes. São imagens de um criminoso que não faz medicina”, complementa Diogo Leite Sampaio.
Denúncias desde 1986
O médico José Hilson é nascido no Ceará e se formou no Rio de Janeiro em 1976. Depois de obter o diploma, voltou para o estado. Entre 1989 e 1992, assumiu a Prefeitura de Uruburetama pela primeira vez, quando virou notícia no Brasil por fazer a primeira prestação de contas do município em praça pública.
As primeiras denúncias ocorreram em 1986. Em 1994, duas mulheres foram à polícia denunciar Hilson de Paiva por assédio sexual durante as consultas. O caso foi arquivado, sem a condenação do médico. “Ele pediu pra eu ficar de lado, colocar a língua pra dentro e pra fora, com os olhos fechados”, conta uma mulher que diz ter sido abusada pelo ginecologista em 1994 e não fez a denúncia na época.
“Quando eu senti, eu estava colocando minha língua no pênis dele. Saí correndo, e ele foi pro banheiro, vestindo as calças.”
Mulher de Hilson também foi prefeita
A mulher de Hilson de Paiva, Maria das Graças Cordeiro de Paiva, assumiu a Prefeitura de Uruburetama por dois mandatos, entre 1997 e 2004. Em seguida, Hilson foi vice-prefeito entre 2013 e 2016.
Em 2018, o prefeito enfrentou uma crise quando um dos vídeos com as relações abusivas que ele mesmo gravou foi divulgado na imprensa. Com a repercussão do caso, cinco mulheres procuraram a polícia e denunciaram o médico por crimes sexuais. A ex-prefeita saiu em defesa do marido. Para ela, houve uma relação extraconjugal, mas não um estupro ou abuso. “Eu quero saber qual é o homem que não trai sua esposa. Eu não conheço no Brasil”, afirmou Maria das Graças na época.
Além de as pacientes não terem conseguido a condenação, o prefeito entrou na Justiça contra quatro delas, alegando calúnia e difamação. Três desistiram de denunciar o médico para evitar serem processadas. A única que mantém as acusações disse ter sido abusada em 1994.
“Para o processo [de calúnia e difamação contra as pacientes] ser arquivado, as vítimas teriam que pedir desculpa pra ele. Quando chegou na minha hora, eu disse: ‘Eu não vou pedir desculpa, você quem deve me pedir desculpa’.”
No Fórum de Uruburetama, o juiz do processo, José Cléber Moura do Nascimento, não quis falar sobre o caso.
Denúncias em outras cidades
José Hilson também atendeu pacientes na cidade de Cruz, a 150 quilômetros de Uruburetama. Além de ter um consultório particular, foi médico da família e atuou como clínico geral no Centro de Saúde e no Hospital Municipal. Em Cruz, ele também gravou vídeos com cenas de abuso sexual; 40 dos 63 vídeos foram filmados em um consultório do centro de saúde.
As cenas são parecidas com as de Uruburetama: o ginecologista fala que está fazendo um exame e engana as pacientes. Doze sofrem abusos. Uma delas foi atendida em 2012.
“Olhei no jaleco dele, ele com os genitais dele toda de fora. Ele realmente queria penetrar em mim. Eu saí de lá correndo. Hoje, eu estou aos poucos buscando força em Deus, tratamento e o apoio da família.”
Ela conta que Hilson a chamava de “bebê”. Nos vídeos, ele trata todas as pacientes com esse termo. “Tá muito inflamada ainda, bebê”; “Isso, bebê”; “Muito irritado, bebê, ainda”, diz em alguns trechos dos vídeos.
Essa palavra traz sofrimento até hoje para vítima. “Quando [alguém] me chama de bebê, vem um impacto. Não aceito esse nome. Bebê, pra mim, é muito chocante.”
‘Nunca fiz nada forçado’
Em entrevista, o prefeito nega ter realizado qualquer prática de abuso. Para ele, as denúncias são uma estratégia de políticos de oposição para afastá-lo.
“Eu nunca fiz nada forçado. Nada à força, não tive nada forçado. Isso é uma jogada da oposição. Querem me derrubar.” Ele afirma que teve relações sexuais com algumas mulheres, “mas não foi no consultório”.
Questionado por que filmava as pacientes, Hilson diz apenas que o repórter “perguntou demais” e deixa o local da entrevista.
Por meio de nota, o advogado do prefeito afirma que o cliente teve conhecimento dos vídeos apenas por “ouvir dizer”, que “aguarda as mídias para uma manifestação mais concreta sobre o caso” e que irá ao Ministério Público para saber sobre a veracidade do material.
Conforme juristas ouvidos pelo G1, Hilson de Paiva pode ser condenado pelas filmagens que fez das pacientes e também por violação sexual mediante fraude e estupro.
“Há muitos anos que esse homem vive abusando um monte de mulheres. Eu espero que aconteça justiça por muitas que não podem falar, que não sabem como falar, que não puderam se defender”, diz uma das pacientes do médico.